quarta-feira, 22 de abril de 2015

texto: Íntegra da entrevista para o portal Conexão Lusófona

entrevista para Bruna Angélica Pelicioli Riboldi
em 17/04/2015


Bruna Riboldi: Primeiro, gostava de entender melhor como surgiu a ideia do projeto. Os azulejos em falta nos prédios era algo que lhe fazia confusão/causava desconforto? o que motivou a intervenção justamente com os azulejos?

Fábio Carvalho: Há alguns anos uso em meu trabalho padrões decorativos de louça de mesa, bem como peças de louça (faiança e porcelana), e até fiz algumas visitas a fábricas de faiança e porcelana aqui no Brasil. Então eu já não estava muito longe da cerâmica. Em 2009 participei de um projeto de arqueologia limpando e separando fragmentos de azulejos do século XIX pelo padrão decorativo, oriundos de escavações aqui no Rio de Janeiro. Foram muitos meses com a cara enfiada em milhares de cacos de azulejos. Durante este trabalho houve visitas a igrejas antigas e ao Museu do Açude, que tem um acervo impressionante de azulejos, telhões de faiança e cerâmica decorativa (urnas, pinhas, estatuária, etc.). Aí certamente surgiu o embrião do meu interesse pela azulejaria antiga.

Macho Toy (sino e sunga verde)

Em 2011 estive em Portugal para minha primeira residência artística no país (Bordallianos do Brasil), e foi quando eu me tornei por completo num apaixonado pela cultura portuguesa em geral, e pela cerâmica e azulejos antigos em particular, tendo até iniciado naquele ano um projeto paralelo de levantamento dos azulejos antigos aqui no Rio de Janeiro (azulejosantigosrj.blogspot.com.br). Foi nesta primeira viagem a Portugal que comecei uma imensa coleção de fotos de fachadas e de pormenores de azulejaria em Portugal. Para minha felicidade, tenho retornado anualmente a Portugal desde então, para residências artísticas e exposições, de forma que meu interesse pela azulejaria só fez aprofundar, e a coleção de fotos aumentar. Já são mais de 5 mil fotos!

Uma parte significativa desta coleção são fotos de fachadas azulejares com lacunas, algumas enormes, muitas vezes  em péssimo estado, algo que me entristece demais, pois são a face explícita de dois problemas muito sérios: a falta de conservação dos imóveis, e o roubo de azulejos para venda em feiras e antiquários, ambos problemas que também acontece aqui no Brasil em todas as cidades que possuem fachadas azulejadas, como Rio de Janeiro, Salvador, Belém, São Luís, etc.

Outra parte desta coleção são fotos de “remendos” em fachadas onde as pessoas usaram azulejos diferentes dos padrões originais, que mesmo não sendo o ideal, cria em alguns casos umas colchas de retalhos fantásticas!


Quando cheguei em Lisboa para mais esta residência artística não tinha qualquer projeto pré elaborado, apenas o desejo de repetir algo nos moldes do que havia feito ano passado, com a intervenção urbana Migração Monarca. Mas logo nos primeiros dias, quando fazia mais fotos de azulejos e remendos, me ocorreu que poderia tentar algo com isso. Por estes dias eu estava fazendo também pesquisa de material em retrosarias para uma nova peça da série “Delicado Desejo” que são armas de fogo feitas com rendas, e resolvi juntar as duas coisas, criar um padrão de azulejos a partir das fotos destas armas de rendas.

BR: quanto tempo você esteve em Lisboa para este projeto? em quais datas precisamente foi feita a intervenção? 

FC: Estive em Lisboa por 40 dias, mas a intervenção aconteceu por 35 destes dias, de 12/2 até 18/3.

BR: os prédios que receberam os azulejos foram mapeados anteriormente ou encontrados "ao acaso"? 

FC: Um pouco de ambos. De forma geral, os prédios foram encontrados de dia, tanto quando saía propositalmente para fazer a prospecção de possíveis locais para a intervenção, quanto quando saía à rua para afazeres diários comuns. Quando encontrava “candidatos”, eu os fotografava ainda sem a intervenção, e os marcava em um mapa para poder reencontrá-los depois. Porém, houve vezes, principalmente nas duas semanas finais do projeto, em que eu saía para alguma área da cidade já levando comigo azulejos de papel e a cola de amido, e quando encontrava uma fachada que poderia ser intervencionada, o fazia de imediato.

APOSTO n° 38, antes e depois da intervenção

BR: quais são os locais exatos onde estão os prédios onde foi realizada a intervenção?

FC: A maioria das intervenções aconteceu em Penha de França e Anjos, pois eu estava hospedado nesta região, mas há muitos também na Graça, e mais alguns pelo Bairro Alto, Baixa, São Cristóvão e Madalena. Os mapas com as localizações exatas de cada uma das intervenções encontram-se neste link >>.

BR: há uma estimativa do número de azulejos "instalados"?

FC: Usei um pouco mais de 300 azulejos de papel.

BR: quantos foram os padrões de azulejos criados? foram criados antecipadamente, ou após conhecer o local das instalações?

FC: Eu criei 3 padrões no total, porém originalmente havia pensando em apenas um padrão, que eu criei a partir de um conceito muito comum na azulejaria portuguesa, no qual a partir de apenas uma mesma unidade, você chega a um desenho maior, combinando de 4 a 8 azulejos, apenas com a rotação dos azulejos. 

Primeiro padrão criado para a intervanção - APOSTO n° 5

Mas logo me deparei com situações onde este padrão não se ajustaria bem, então criei o segundo padrão, para dialogar melhor com fachadas onde o desenho já está completo com apenas um azulejo, que foi usado em várias fachadas, como no exemplo abaixo (foi justamente ao me deparar com esta fachada com uma enorme falta que veio a vontade de criar).

Segundo padrão criado para a intervanção - APOSTO n° 14

Por fim, eu criei o terceiro padrão, exclusivamente para uma única fachada, pois esta apresenta um desenho bem menos comum em Lisboa, de um padrão que é composto por 2 azulejos diferentes, que juntos foram um motivo em linhas diagonais. Para este terceiro padrão eu igualmente criei 2 desenhos diferentes que se complementam e juntos ecoam e se integram ao motivo original.

Terceiro padrão criado para a intervanção - APOSTO n° 10

BR: Sobre a reação das pessoas e da cidade -- você esteve em Lisboa por algum tempo para acompanhar a repercussão? Como foi?

FC: Eu pude acompanhar um pouco da repercussão quando ainda estava em Lisboa, às vezes até imediatamente! Como por exemplo quando moradores dos prédios viam a intervenção logo após eu a ter executado. O curioso é que em alguns destes casos eu vi debates acalorados, mas nunca alguém os arrancou das paredes. Houve também casos de pessoas que me abordaram enquanto eu ainda colava os azulejos, e tive conversas ótimas com estas pessoas. Numa das vezes um rapaz lamentou que seu prédio não tivesse azulejos na fachada, pois ele gostaria que eu lá fizesse a intervenção! Interessante que nunca houve qualquer abordagem negativa.

Visita guiada promovida pela Casa da América Latina com diplomatas. (foto Rodrigo Vila)

Com as visitas guiadas promovidas pela Casa da América Latina eu pude ouvir comentários muito interessantes dos participantes das visitas. Vi também fotos e comentários no facebook e instagram, tanto de pessoas que compartilharam as minhas fotos, ou publicaram as suas próprias, o que continuo a acompanhar, pois a maior parte das intervenções ainda está pelas paredes, e vão continuar por lá enquanto as pessoas e as intempéries deixarem. E claro, há também a repercussão na mídia, tanto impressa como digital, mas principalmente nesta última, que foi muito além e muito maior do que eu poderia imaginar!

BR: você não teve receio de ter algum tipo de reação negativa por parte da câmara municipal, por exemplo? de o projeto ser mal interpretado?

FC: Tive muito receio! O tempo todo! Poderiam considerar o que eu fazia vandalismo. Passava na minha cabeça o tempo todo a imagem da minha deportação, ou então prisão, multa, tudo! Eu fiz o projeto sem pedir qualquer tipo de permissão, justamente pois queria que fosse algo que surgisse nas paredes sem nenhum tipo de aviso prévio, que fosse algo que pegasse as pessoas de surpresa. A maior parte das intervenções foi feita de madrugada. Mas felizmente antes de promover as visitas guiadas, a Casa da América Latina fez uma consulta à câmara municipal, que disse que não havia nada de ilegal ou criminoso no que eu fazia, e depois de sabê-lo eu passei a me sentir mais tranquilo na execução do projeto.

BR: fale um pouco mais sobre o interesse pela intervenção urbana e este amor por Lisboa.

Migração Monarca - Lisboa - 2014

FC: A primeira intervenção urbana que fiz em Lisboa, ano passado (Migração Monarca >>), aconteceu em paralelo a uma exposição que fiz no Rio de Janeiro, para a qual originalmente criei as bandeirinhas de papel de seda com os meus soldados “Monarcas” [veja neste link >>], uma vez que a proposta do curador da exposição, Marco Antonio Teobaldo, era justamente trabalhos efêmeros em papel de seda. A ideia de fazer bandeirinhas veio do fato desta exposição acontecer em junho, mês das nossas “festas juninas” que correspondem às festas dos santos populares em Lisboa, e as bandeirinhas de papel de seda colorido são a decoração mais característica das nossas festas juninas.

visita guiada à intervenção APOSTO com o curador Marco Antonio Teobaldo

Então daí foi um passo natural levar as minhas bandeirinhas para Lisboa, para misturá-las na decoração da festa dos santos populares, pois eu iria passar exatamente o mês de junho em Portugal, numa residência artística na Cerâmica São Bernardo, em Alcobaça. O nome, “Migração Monarca”, tem a ver com isso, a transposição de algo que nasceu no Rio de Janeiro e “voa” até Lisboa, como as borboletas monarcas, que são as únicas borboletas migratórias, que nascem no norte da África e migram até o Algarve, e justamente no início do verão, como eu estava para fazer. 2014 foi o ano em que se comemorou 40 anos do 25 de abril (soldados com asas vermelhas!); o tema das festas foi a "Peregrinação", livro de Fernão Mendes Pinto, que completou 400 anos da sua publicação... tudo parecia conspirar a meu favor!

Migração Monarca - Lisboa - 2014

O amor por Portugal de uma forma ampla, e por Lisboa em particular, se deu desta identificação imediata com a cultura lusitana que comentei antes, com a dinâmica das cidades, o ritmo de vida, o jeito das pessoas, com o qual eu não apenas me identifiquei, mas no qual me reconheci. Eu senti um imediato conforto, me senti mesmo em casa, como se retornasse à casa. Não deve ser algo tão incomum para um carioca, descendente de portugueses por todos os lados, mesmo que já bem lá para trás, tenho em minha família Carvalhos, Souzas, Rochas, Cardosos... Mas talvez para um carioca de alma mais melancólica e contemplativa, do que solar e festiva, e que ainda mais é filho de um professor universitário de cultura e literatura portuguesa, isso fosse algo inevitável, apenas esperando para acontecer.

quinta-feira, 9 de abril de 2015

segunda-feira, 6 de abril de 2015

texto: Da Potência, ao Ato: uma entrevista com o artista brasileiro Fábio Carvalho

Esta entrevista faz parte de conversas com o artista brasileiro Fábio Carvalho que, no dia 8 de fevereiro de 2015 partiu para Lisboa para dar início ao projeto que chamou de Residência Artística HS13rc – uma iniciativa desvinculada de qualquer instituição, pensada e articulada por ele sob o mote “o artista não depende da instituição, o artista É A INSTITUIÇÃO”.



Momento I: A chegada


Maykson Cardoso: Outro dia conversava com um artista estrangeiro que se dizia estarrecido por ter percebido que a maioria dos artistas que conheceu por aqui se angustia com o fato de não ter a chancela de instituições para a realização de seus trabalhos. Foi interessante ouvi-lo e, em alguma medida, estou de acordo com ele. Ainda que não possamos obliterar o fenômeno dos coletivos de artistas que pululam, no Brasil e no exterior, com o propósito de colocar em xeque essa institucionalização, de criar, de fato, espaços alternativos que possam acolher ações artísticas das mais diversas. No entanto, a Residência HS13rc, enquanto uma iniciativa individual, isto é, que diz respeito apenas ao seu processo criativo, à sua produção e a recepção dela pelo público, nos aponta algo que aprendemos com Helio Oiticica e Lygia Clark, mas que parece ter sido esquecido: o que o artista PODE, ele mesmo, única e exclusivamente a partir dos materiais e meios que tem disponível... Enfim, acho que poderíamos começar a nossa conversa por aí...

Fábio Carvalho:  Isso é uma questão que me interessa profundamente. Não sei se é uma questão geracional, pois quando comecei, nos anos 1990, não havia praticamente nada! Era o período pós-Collor, todas as instituições públicas e privadas estavam quebradas. Quase nenhuma galeria comercial ainda funcionava a contento. A inflação de centros culturais ainda não havia começado. Quase não aconteciam exposições. Jamais se imaginaria, naquela época, uma feira de arte no Brasil, quanto mais duas, de peso.
Para quem estava começando então, a coisa era ainda pior, e a saída eram os salões de arte, que se multiplicaram naquela década, e as mostras de levantamento da produção emergente, como o Projeto Macunaíma, Antárctica Artes, entre outras. Uma coisa bastante comum, e nos primeiros anos da década de 2000, era ver artistas iniciantes e mesmo veteranos se juntando em grupos para produzir as suas próprias exposições, em espaços “oficiais” ou não. E tivemos exposições incríveis assim, e que são até hoje lembradas, como a série Orlândia, Nova Orlândia e Grande Orlândia, organizadas pela saudosa Márcia X e Ricardo Ventura.

E agora, em um movimento que já dura mais de 10 anos, multiplicaram-se as galerias comerciais, inclusive  galerias estrangeiras que se aportaram no Brasil; além das feiras de porte internacional, temos os centros culturais que, depois de uma multiplicação excessiva e posterior amadurecimento e “filtragem”, se tornaram instituições poderosas; as bienais também se multiplicaram. Temos agora tantas exposições que em noites de abertura, muitas vezes, é preciso abrir mão de algumas. É por isso, talvez, que os artistas tenham sentido que era a hora de aproveitar mais a maré institucional, pois realmente dá muito trabalho e muita canseira, fora o grande peso financeiro, produzir eventos independentes, ainda mais agora que tudo em nosso país ficou caríssimo. Não acho essa postura errada. As instituições são importantes e, algumas delas, fundamentais. É preciso que existam, para que haja um sistema de arte sólido. A questão é: elas não podem ser o único horizonte possível. Eu vejo muito artista iniciante que, depois de ter passado dois ou três anos em escolas de arte, não conseguem pensar em nada além de fazer parte do elenco de uma galeria, participar das feiras e se aproximar de curadores, de agentes, “badalados”.


MC: É interessante esse panorama que você apresenta. De fato, um “sistema oficial” de arte contemporânea no Brasil só muito recentemente vem se profissionalizando, o que culmina no surgimento de outras instituições, para além dos grandes museus... 

FC: Exato. O que quero dizer com tudo isso é que, em torno desse “sistema oficial”, pode e DEVE existir também uma cena mais independente, com movimentos que partam da iniciativa coletiva ou individual dos artistas. Estes movimentos acontecem ainda, não tanto como antes, mas deveria haver muito mais. E não apenas iniciativas de artistas buscando um lugar ao sol, mas de todos! Artistas veteranos também deveriam bancar ações independentes e fora do crivo institucional oficial. O Oiticica e a Lygia lá ficaram esperando que algum curador ou instituição lhes “autorizasse” a fazer qualquer uma das coisas que fizeram? Iniciativas que partam inteiramente dos próprios artistas são necessárias para renovar a cena artística, pois geralmente a paisagem oficial é um pouco fechada, viciada, tende a repetir nomes e temas. Os artistas TÊM QUE apontar novos caminhos, indicar as novas questões...


FC: Recentemente lancei a seguinte provocação, quando comecei a elaborar o projeto da Residência Artística HS13rc: “o artista não depende da instituição, o artista É A INSTITUIÇÃO”. E realmente acredito nisso! Mas estamos todos demasiadamente submissos, esperando a aprovação do curador do momento, e da acolhida pela galeria poderosa. Nos últimos anos participei de várias residências artísticas “oficiais”, algumas com orçamentos poderosos. Mas muitas vezes são justamente estas, que por um lado oferecem muita infraestrutura e conforto que, por outro, nos cerceiam com várias exigências, várias restrições.

MC: Entendo, este insight é mesmo interessante. É preciso que o artista faça, da potência, um ato. Em que momento isso ficou mais claro para você e permitiu que você pensasse na residência?

FC: um dia vi um artista publicar fotos de uma ação que era totalmente sem suporte institucional. Simplesmente o cara foi lá, ocupou temporariamente um local público, fez seu trabalho, produziu suas obras, realizou várias ações, registrou tudo, e decidiu que aquilo era SIM uma residência artística. E eu pensei “BRAVO! É isso mesmo! Ele está certíssimo!” O princípio de uma residência artística como uma experiência realizada longe de sua casa/atelier, fora da sua zona de conforto e costume estava lá. Ele lidou com questões específicas daquele local/experiência. Daí começou o processo da Residência Artística HS13rc, que não nasceu da carência de oportunidades, pois nos últimos 4 anos participei de 6 residências artísticas “oficiais” em Portugal, mas sim do desejo de poder fazer algo que não fosse balizado por nada ou ninguém, além da minha própria vontade. Ano passado já havia realizado uma intervenção urbana em Lisboa por conta própria, sem aprovação ou apoio de ninguém, mas este ano resolvi fazer algo de maior porte, não apenas uma intervenção urbana, mas uma verdadeira residência artística, de onde estão saindo vários trabalhos e ações, de caráter totalmente independente. E como uma provocação, eu decidi que o projeto teria um “nome institucional”, um programa/apresentação, onde estão listadas as propostas da residência, que tudo seria documentado, haveria um site/blog, etc. É um pacote completo, justamente para mostrar que é possível se pensar a produção e veiculação artística além das instituições oficiais. Pode soar um pouco romântico ou anacrônico em uma época tão pragmática, mas foi o que desejei fazer agora.

Intervenção Urbana APOSTO n° 33 | Lisboa - Portugal | impressão laser s/ papel e cola de amido sobre fachadas de edifícios

Momento II: Da Volta


MC: Já faz alguns dias que você voltou de Lisboa deixando, lá, nas paredes de Anjos, os vestígios de sua passagem: suas intervenções ora mínimas, ora tomando uma proporção um pouco maior, em ambos os casos - e acho que este é um traço indiscutível de seu trabalho - intervenções cirúrgicas...

FC: Imagino que você se refira ao fato que nas intervenções urbanas que já realizei há sempre como traço comum a preocupação com que a intervenção se integre de forma quase parasítica ao seu entorno, que silenciosamente invada e se agregue ao seu “hospedeiro”, e que crie uma relação com o que já estava lá antes.
Na intervenção que fiz este ano, chamada APOSTO, criei três novos padrões de azulejo, a partir de fotos de peças de um outro trabalho meu, chamado "Delicado Desejo", que são armas de fogo criadas a partir de um patchwork de diversas rendas. Os novos padrões foram impressos em papel, e depois os azulejos de papel foram aplicados com cola de amido em fachadas de prédios lisboetas onde os azulejos originais já estavam em falta nestas fachadas, por deterioração ou roubo.

Delicado desejo n° 6 | rendas | cortesia coleção Pedro Gomez, Lisboa, Portugal| 2014 | 30 x 40 cm

As intervenções vão desde a forma mais discreta possível, apenas 1 ou 2 azulejos de papel, até alguns casos de “invasões” maiores com 15, 24, até mesmo 38 azulejos. Era a própria parede que me dizia quantos azulejos deveriam ser inseridos junto aos azulejos originais. No total, usei pouco mais de 300 azulejos de papel em 45 pontos de intervenção. O resultado pode ser muito diferente, independente da escala da intervenção – algumas vezes os azulejos de papel causam um certo estranhamento ao olhar, quando há mais contraste entre azulejo de papel e azulejo cerâmico original, em outras podem ser facilmente confundidos com os azulejos originais, mesmo que estejam em grande número.

De toda forma, mesmo nos casos onde usei mais azulejos de papel, a escala final da intervenção é relativamente pequena, se pensarmos no que é tradicionalmente entendido como arte urbana: paredes inteiras de vários andares de altura, muros de muitos metros de extensão, ou esculturas monumentais. Meu interesse é outro. Talvez seja aí que você também veja o aspecto cirúrgico que mencionou. Os projetos que realizei até hoje foram sempre de uma escala discreta; são peças pequenas, infiltradas. Não são obras que cobrem e ocupam de forma incisiva e chamativa um espaço e uma superfície. Meus projetos atuam como pequenas inserções. As peças aparecem mais pelo contraste que causam, por perturbarem ou provocarem o que já está lá, do que se impondo de cima para baixo a um espaço. São peças que exigem uma aproximação, uma intimidade, para que possam agir. Ficam dormentes até que você as ative com seu olhar. Não gritam — sussurram.

Intervenção Urbana APOSTO n° 14 | Lisboa - Portugal | impressão laser s/ papel e cola de amido sobre fachadas de edifícios

Quando se grita, muitas vezes se consegue mais incomodar do que fazer refletir, pois o grito impede o pensamento. O grito impõe uma “verdade” pronta e definitiva. Quando alguém sussurra, instintivamente nos aproximamos mais para tentar entender. Por vezes não ouvimos tudo o que foi sussurrado, ou o que ouvimos não diz propositalmente tudo, e nossas mentes têm a necessidade instintiva de preencher os vazios. Buscamos sempre fazer sentido daquilo que apreendemos com nossos sentidos. É preciso compreender, decifrar e decidir se algo é potencialmente perigoso ou não, se é útil para nós de alguma forma, ou se é algo que se pode ficar indiferente. Isto é uma característica da espécie humana. Foi por isso que nos adaptamos tão bem a todos os ambientes, e nos espalhamos por todo o planeta como a mais bem-sucedida das pragas.

MC: Você sabe que sou formado em Letras, que sou professor de português e que não posso deixar de comentar o título que você deu ao seu projeto: "aposto". Gosto, especialmente, da ambivalência dessa palavra, isto é, sua condição de verbo em primeira pessoa — "eu aposto" — e, por outro lado, sua condição de informação "acessória" em uma frase: aquilo que complementa, que a enriquece, mas que, por outro lado, pode faltar. É por aí que você pensa esta sua intervenção?

FC: Para mim é sempre fundamental que um trabalho meu tenha um título, mas nunca um título descritivo ou explicativo. Eu busco títulos que sacudam certezas que se pode ter do trabalho, títulos que ampliem as possibilidades de compreensão e interpretação de um dado trabalho. Algumas vezes o título nasce de imediato. Nas demais, o dicionário é sempre o meu melhor amigo! Quando procurava o título para o projeto de intervenção urbana, comecei pelas ideias de acréscimo, inserção, invasão. Nas muitas voltas pelo dicionário de sinônimos, em algum momento passei por colocar, por, contrapor e... me veio à cabeça — como um flash de luz — APOSTO! Gramaticalmente, algo que aparece sempre entre vírgulas, travessões ou parênteses, ou seja, de alguma forma delimitado, cercado, o que faz um paralelo com os espaços vazios entre os azulejos cerâmicos; o aposto também é algo que se relaciona com um termo anterior, que no meu caso, obviamente, são os azulejos originais já existentes.

A possibilidade de ser a conjugação do verbo “apostar” não veio-me de imediato, mas apenas quando comecei a fazer as intervenções de madrugada, enfrentando um frio que deixava meus dedos duros e doloridos, o vento que levava embora os quadrados de papel que ainda não tinham aderido à parede, o susto com cada carro que passava, o temor que a próxima pessoa que se aproximasse fosse um policial ou um morador irritado. Foi só aí que eu me dei conta que aquilo era também uma grande aposta, em muitos sentidos! Eu não sabia se a intervenção iria funcionar, se alguém iria perceber os azulejos de papel em meio aos originais, eu não sabia sequer se no dia seguinte tudo já teria caído ou sido arrancado! Eu não sabia se eu poderia até mesmo ser preso ou obrigado a pagar alguma multa. E depois também me dei conta que todo o projeto da residência HS13rc era uma grande aposta! Era uma empreitada independente e sem qualquer apoio ou promoção institucional. Felizmente foi uma aposta que se revelou vencedora. Houve instituições que se aproximaram, como a Casa da América Latina e a Junta da Freguesia de Arroios, e que deram alguma forma de maior visibilidade ao projeto, e houve também uma grande repercussão sobre a intervenção urbana Aposto na mídia. Já encontrei também diversas fotos da intervenção no Instagram, facebook e Tumblr, e imagino que haja muitas mais que simplesmente não achei por não estarem com alguma hashtag.

BRASILEIRO FÁBIO CARVALHO ESPALHA ARTE URBANA APOSTO POR LISBOA (Trendy.pt)


http://trendy.pt/2015/04/06/brasileiro-fabio-carvalho-espalha-arte-urbana-aposto-potlisboa/